André ainda permaneceu durante cerca de um mês no Colégio, onde entretanto ingressara mas, assim que se aproximaram os dias da mãe regressar à Terceira, quis forçosamente acompanhá-la. Só que voltou mais amargo do que nunca, pois a expectativa que transportara consigo à partida, não se concretizaram. Fora rejeitado pelos colegas que o escarneciam devido ao seu aspecto vesgueiro. Não raro acusava os pais do seu acto que considerava tresloucado e, mesmo quando estes lhe recordavam que era exactamente a essa loucura que ele devia a vida, ele respondia de forma desabrida: - Pois melhor fora não ter nascido!
Este que, entretanto, atingira os dezoito anos, assumiu as rédeas do negócio, mas a vida daquela gente passou a ser um verdadeiro inferno. Começou por despedir o feitor João Martins - que seu pai nomeara há já muitos anos - dando-lhe o tratamento dum qualquer trabalhador. Dizia que não precisava de ninguém para o ajudar. E, assim, aquela Casa que, durante vários anos, fizera a Felicidade de tanta gente, era agora um lugar detestado e só lá trabalhavam aqueles que não tinham outra forma de ganhar o pão de cada dia.
Entre estes contava-se o António da Queimada, homem de mau feitio, mas que conseguiu ganhar as boas graças do novo patrão. E porquê? Primeiro porque se prestava a todas as malvadezes que este praticava; mas também porque era pai da Amélia, moça muito bonita, e sobre quem o André (agora já com vinte e três anos) pousara um dia o seu olho vesgo. Não porque o movesse qualquer sentimento nobre, mas sim devido ao desejo mórbido de a possuir. Ele que, apesar de malvado, era de grande timidez em frente de mulheres, talvez por se saber bem pouco atraente. Já de algum tempo que a casa era sacudida por estranhos estrondos, cada vez mais fortes e frequentes. Já se falava até de almas do outro mundo e, inclusivamente, os mais crendeiros, afirmavam tratar-se da alma de D. Violante que não sossegava lá no Céu enquanto na terra o filho tinha tais procedimentos e o marido consumia a sua vida no alcoolismo. De tal sorte que, um dia, perante um estrondo mais forte, a única criada que lá trabalhava e apenas para tratar do pai, então já acamado, fugiu esbaforida gritando que se tratava de coisas do inimigo e que nem morta voltava mais àquela maldita casa. Esses estrondos eram acompanhados do aparecimento de grandes fendas na casa mas que, André, ou não se apercebia, porque ocupava apenas o seu quarto e a cozinha, ou então, pouco interessado em gastos que, em seu entender, fossem desnecessários, preferiu ignorar.
Quando o António da Queimada, que a toda a força queria casar a filha com o seu amo (como servilmente tratava o patrão), soube da fuga da criada, lembrou que, se ele a mulher e a filha fossem para lá viver, onde não faltavam cómodos, para além de tratarem do pai e da lida da casa, talvez que a filha se convencesse a casar. André sorriu malvadamente e aceitou a ideia. É que a Amélia estava de namoro com o José, filho do antigo feitor e nem lhe passava pela cabeça casar com o patrão do pai, que detestava.
No mesmo ano em que seu pai morreu, a ilha, após sangrentos combates, caiu nas mãos dos espanhóis. A morte de Guilherme Matias Simão não causou a tristeza que causara anos antes a da esposa. Já de há muito que não aparecia e o povo dizia que, com tal vida e tal filho, o melhor foi mesmo Nosso Senhor o ter levado para junto da sua estremecida esposa.
André assistiu à capitulação da ilha sem grande preocupação. Nunca fora dado a grandes patriotismos e uma vez que a sua vida e haveres haviam sido poupados, de que poderia queixar-se? Desde que continuasse sem problemas, ele decerto não os iria suscitar. E só havia uma maneira de o saber.
Assim que teve a certeza que os espanhóis já tinham, de forma irreversível, dominado a ilha (não fosse o diabo tecê-las) mandou limpar o coche que, desde a morte da mãe, nunca mais fora utilizado, ajaezou o melhor que foi possível dois cavalos e, envergando uma das vestes mais luxuosas de seu pai, lá partiu para Angra, a fim de chegar à fala com os espanhóis. Foi recebido, após várias diligências, por um dos lugar-tenentes do Marquês de Santa Cruz a quem manifestou o seu apoio ao Rei Filipe II de Espanha e aproveitou para informar que estava pronto a fornecer farinhas, fruta e vinho, caso necessitassem.