Jorge Moreira Leonardo

Matias Simão

04 de Setembro de 2024


Capítulo VI

A ida da Amélia lá para casa não resultou como o pai prometera a André. Se ela já o detestava, agora que partilhava do mesmo sentimento de repulsa que provocara junto do povo da freguesia o seu servilismo aos invasores - com quem até já negociava - essa atitude agravara-se. Isto apesar de a mãe insistir que boniteza não põe mesa e que ela mais o José nunca passariam da cepa torta. Argumentos que nunca convenceram a filha.

Um trágico acontecimento veio, porém, ajudar os intentos maquiavélicos do André mais daquele que já considerava como seu sogro.

Os invasores andaram arrebanhando pela ilha homens fortes e jovens para trabalharem nas muralhas do Castelo. Ora, o José reunia essas condições pelo que, juntamente com outros, teve de se submeter, pois os soldados tinham instruções para executaram todos os que se negassem, até como aviso e desencorajar futuras recusas. Trabalhando quase como escravos - de tal sorte que nunca lhes era permitido vir passar um único dia a casa - e sem quaisquer condições de segurança, eram frequentes os acidentes mesmo mortais. O governo espanhol limitava-se a mandar colocar na porta das igrejas simples notas informando das mortes e cujos corpos, estranhamente, haviam sido sempre tragados pelo mar. O povo acreditava que tudo isto não passava duma tremenda mentira dos espanhóis, para se livrarem do incómodo de entregar os corpos às famílias.

Foi então que André arquitectou um plano só possível partindo da sua mente diabólica. Nem o quis partilhar com o Queimada. Por essa altura, devido aos frequentes contactos, já tinha estabelecido um forte relacionamento com alguns espanhóis influentes que, não raro, o visitavam e a quem oferecia excelentes almoçaradas. Muito particularmente com um sargento Alvarez que, aliás, era encarregado dos abastecimentos.

Foi numa delas, quando estavam já todos bem bebidos, que contou ao sargento o seu intento de casar com a Amélia, mas que esta se recusava por estar enamorada dum tal José que trabalhava lá nas muralhas do castelo. Não queria que fizessem mal ao rapaz, mas se constasse  que ele tinha morrido num dos tais acidentes, talvez ela o esquecesse e se resolvesse casar. Prometeu que seria bastante generoso para com quem resolvesse este problema. De facto alguns dias depois a freguesia foi abalada com a notícia de que o José havia morrido num acidente e nas mesmas condições dos anteriores.

Amélia, para quem a notícia da morte do José foi como se ela própria tivesse morrido, desistiu de lutar contra o destino e consentiu no casamento.

Entretanto o José Martins, alheio a tudo quanto se passara, incluindo que para familiares e amigos estava morto, continuava trabalhando na construção do castelo, então de S. Filipe que ironicamente iria servir de protecção ao inimigo que tanto detestava.

Ao princípio, tal como a maioria dos companheiros de infortúnio, ainda manifestou alguma rebelião, mas depressa se convenceu que essa atitude era absolutamente inglória e apenas servia para aumentar o seu sofrimento pois os espanhóis em matéria de castigos eram duma crueldade sem limites. Passou a fazer o seu trabalho e aguardar que Deus um dia havia de se compadecer dele e devolver-lhe a liberdade que perdera de maneira tão trágica.

Esta mudança de comportamento do José permitiu-lhe ganhar alguma amizade junto dos guardas e, muito particularmente, dum Juan Carlos Mendez, moço de idade próxima da sua, de quem se tornou confidente, para o que se serviam da algarviada meio portuguesa meio espanhola. Assim, começou a beneficiar de alguma protecção e, por vezes, alguma melhoria na alimentação.

Sabendo que o seu antigo patrão continuava abastecendo as forças estrangeiras, atreveu-se um dia a pedir ao Juan para ver os seus amigos, ainda que de longe. Este acedeu embora prevenindo-o que isso só poderia acontecer no maior segredo e, acautelando-se também, disse-lhe que se ele assumisse qualquer atitude que alertasse os restantes guardas o acusaria de tentativa de fuga com as consequências que ele já conhecia.

Um dia o seu amigo espanhol informou-o que os seus conterrâneos viriam trazer um carregamento de farinha e vinho. Combinaram a maneira de conseguir que o José visse os seus amigos fingindo qualquer tarefa. Realmente, aí por meio da tarde, ele viu os seus amigos e, com grande comoção, apercebeu-se da presença do pai. Não conteve um impulso no sentido de correr para ele, mas o amigo espanhol colocando-lhe a espingarda contra o peito recordou-lhe o compromisso que havia assumido. Nessa noite o José não pregou olho e chorou quase constantemente.

O casamento foi aprazado para o primeiro Domingo de Fevereiro. O Inverno que se apresentara naquele ano bastante rigoroso, com chuvas diluvianas, e o mar tão bravio que parecia querer engolir a terra, cobrindo, por vezes, toda a fajã, resolveu caprichar no dia do casamento como que acompanhando o desgosto da Amélia. O André, de contente, pela cedência dela que assumiu como sincera, mandou abater um dos seus novilhos mais gordos e serviu, após o casamento, uma abundante boda (aos poucos convidados que aceitaram testemunhar aquela monstruosidade) num amplo armazém que seu pai havia construído, este então já num terreno situado na planície                            

A ida da Amélia lá para casa não resultou como o pai prometera a André. Se ela já o detestava, agora que partilhava do mesmo sentimento de repulsa que provocara junto do povo da freguesia o seu servilismo aos invasores - com quem até já negociava - essa atitude agravara-se. Isto apesar de a mãe insistir que boniteza não põ…





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