Concordo com quem sustenta que o significado da reeleição de Donald Trump é dramático para a democracia e que ele exorbita das fronteiras dos EUA e vai influenciar negativamente a evolução da situação política na Europa e no Mundo.
Discordo, parcialmente, da asserção de que «o sentido de progresso da Humanidade (…) entrou outra vez em recuo» e que «as trevas estão de volta»1, tendo a minha discordância a ver só com o facto de tal asserção se ter alicerçado unicamente na vitória de Trump, sem levar em conta, aparentemente, outros acontecimentos que têm ocorrido em todo o mundo e que concorrem para a mesma conclusão.
Em sede de balanço das recentes eleições presidenciais norte-americanas, afigura-se-me oportuno revisitar alguns dos erros que politólogos, jornalistas e comentadores consideram que mais contribuíram para a derrota de Kamala Harris e para a vitória de Trump.
Desde logo, eles culpam Joe Biden por ter, erradamente, teimado em recandidatar-se, tendo em conta a sua idade, as suas notórias debilidades e o balanço negativo que grande parte dos americanos fazia e faz do seu mandato.
Registam também, criticamente, o facto de Joe Biden ter designado demasiado tarde, como candidata para o substituir, Kamala Harris e o facto de esta ter tido uma intervenção discreta, em contraste com a personalidade carismática de Trump, bem como lhe apontam, outrossim criticamente, não se ter distanciado da administração Biden, bem como não ter denunciado a insegurança, as dificuldades e o receio de muitos norte-americanos face à desindustrialização, à inflação e à imigração clandestina, e ainda não ter percebido e/ou ter desvalorizado o profundo ressentimento que a maioria dos norte-americanos nutria e nutre para com as políticas que os têm vindo a empobrecer cada vez mais.
Acusam o Partido Democrata, por outro lado, de não ter sido capaz de compreender que aquele ressentimento se encontrava extremado ao ponto de uma parte significativa do eleitorado estar disposta, na procura de uma alternativa, a "fechar os olhos" às ilegalidades de Trump, aos seus processos judiciais e às ameaças que em campanha eleitoral proferiu contra a democracia.
Assim como o acusam de se ter empenhado, com o apoio de elites intelectuais, nas lutas das chamadas “causas fracturantes”, negligenciando as lutas por melhores condições laborais e de vida dos trabalhadores norte-americanos, abandonando as suas bases de apoio tradicionais, nomeadamente os sindicatos, bem como de ter defendido, ao longo do último ano, sem limites, o financiamento e o fornecimento das armas com que os EUA alimentam a guerra, a destruição e o genocídio que Israel está a levar a cabo na Faixa de Gaza, com a inerente perda de votos de muitos árabes e de muitos jovens, sobretudo universitários, norte-americanos.
Subscrevo, em maior ou menor medida, estas imputações, mas julgo que a crítica mais coerente, formulada dentro dos EUA contra o Partido Democrata – ainda assim curta, em minha opinião – foi a de Bernie Sanders, um senador à esquerda dentro do Partido Democrata, que considero ser um social-democrata, mas para o qual a opinião pública americana olha como um comunista…
Bernie Sanders alertou para que «primeiro foi a classe trabalhadora branca e agora são também os trabalhadores latinos e negros» a abandonarem o Partido Democrata, lembrou que «hoje, enquanto os muito ricos vivem fenomenalmente bem, 60% dos americanos vivem salário a salário e temos mais desigualdade de riqueza e de rendimentos do que alguma vez tivemos», tendo, ao mesmo tempo, chamado a atenção para que «os salários do trabalhador médio norte-americano, ajustados à inflação, são hoje mais baixos do que há 50 anos», para que hoje «muitas pessoas jovens vão ter uma qualidade de vida pior do que a dos seus pais» e para que os EUA são «a única nação rica do mundo que não garante cuidados de saúde a todos como um direito humano».2
Reitero que esta crítica, tendo sido frontal, foi curta.
É consabido que foi o Presidente republicano Ronald Reagan que, na década de 80 do século passado, desmantelou os instrumentos de regulação da economia que restavam do new deal de Roosevelt e desencadeou nos EUA as políticas neoliberais para as quais o papel do Estado na economia deve ser mínimo, o funcionamento do mercado é que assegura a justiça social, a circulação de capitais deve ser desregulamentada, os contratos de trabalho devem ser precários, os despedimentos devem ser flexibilizados e o valor dos salários deve ser fixado em função das respectivas oferta e procura.
Também são conhecidas as consequências ruinosas dessas políticas, das quais destaco, como exemplos mais elucidativos, a desindustrialização dos estados da rust belt (cintura da ferrugem) decorrente da globalização e da deslocalização para países asiáticos, designadamente para a China, de grandes empresas – que teve como consequências o desemprego, a pobreza e a exclusão dos seus trabalhadores – e a poderosa ofensiva que provocou, a coberto de leis aprovadas pelo Congresso, a fragilização e a decadência dos sindicatos.
Parece menos conhecido, contudo, o facto de que estas e outras políticas neoliberais foram prosseguidas e aprofundadas, ao longo de 43 anos, tanto pelos quatro Presidentes republicanos, incluindo Trump, como pelos três Presidentes democratas, incluindo Biden, que durante aquele período governaram os EUA.
O que permite concluir que Trump, para além de personificar uma perigosa ameaça à democracia nos EUA, não irá dar qualquer solução aos problemas económicos e sociais que afligem a maioria dos norte-americanos, que ele, com mentiras e promessas demagógicas, prometeu resolver.
1 MANUEL CARVALHO, «Um Novo Tempo de Trevas», Público de 07.11.2024.
2 Comunicado de Bernie Sanders no X (ex-Twitter) em 06.11.2024.