Tenho que dizer àqueles que chamam a nossa atenção para o facto de Trump ter sido eleito Presidente dos EUA em «eleições livres e justas» que, sempre que o assinalam, estão a desvalorizar, objectivamente, o dramático significado e as preocupantes consequências daquela escolha dos norte-americanos…
A confiabilidade dos resultados das eleições presidenciais norte-americanas do passado dia 5 de Novembro – que alguns têm invocado nas últimas semanas – não legitima, só por si, o grave atentado contra o regime, as instituições e os valores democráticos que vigoram, em maior ou menor medida, nos EUA, que a eleição de Donald Trump como Presidente daquele país significa.
Nem o facto de tais resultados eleitorais terem sido considerados «sérios» torna menos perigosa a ameaça que Trump, na Casa Branca, representará para a democracia nos EUA e no mundo.
É certo que não é novo o fenómeno perverso a que estamos a assistir da eleição, com o respeito, pelo menos no essencial, das regras democráticas, de governantes ultranacionalistas, autoritários, de extrema-direita e fascizantes.
Com efeito, Trump não foi o primeiro – nem terá sido, provavelmente, o último – candidato a chefe de Estado com aspirações autoritárias e com projectos ditatoriais a ter chegado ao poder através de eleições «livres e justas», sendo de anotar, quanto a ele, Trump, que já o conseguiu fazer por duas vezes.
Nem foi o primeiro candidato a ditador a explorar e a aproveitar-se, usando um discurso populista e demagógico, de uma situação de crise económica e social profunda, bem como do consequente ressentimento generalizado em vastíssimas camadas da população contra desigualdades e injustiças extremas, com o objectivo de, depois de alcançar o poder, tentar acabar com a democracia ou restringi-la fortemente.
Chegaram ao poder no presente século, através de eleições consideradas «livres e justas», com programas de governo, nuns casos mais abertamente, noutros dissimuladamente, autoritários e/ou ditatoriais, políticos como Recep Erdogan, na Turquia, Jair Bolsonaro, no Brasil, Rodrigo Duterte, nas Filipinas, Viktor Orbán, na Hungria e Javier Milei, na Argentina.
Mas, inquestionavelmente, a conquista do poder por um ditador, através de «eleições livres e justas», que teve as consequências mais trágicas e mais catastróficas registadas na História, foi a que Adolf Hitler protagonizou na Alemanha, há 92 anos: dela resultaram, para além de outras dramáticas repercussões, mais de 50 milhões de mortos, 26,6 milhões só na ex-URSS, 11 milhões assassinados nos campos de extermínio que a Alemanha construiu para eliminar os «povos inferiores» e os «inimigos do Estado», dos quais 6 milhões foram judeus e 5 milhões foram dissidentes políticos e religiosos do regime nazi (comunistas, socialistas, sociais-democratas, sindicalistas, padres cristãos, testemunhas de Jeová, ciganos, deficientes e homossexuais).
Na verdade, foi em Julho de 1932, que o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães – o Partido Nazi de Adolf Hitler – obteve 37,3,% dos votos, tendo-se tornado, assim, no maior partido político da Alemanha e tendo voltado a assegurar a maioria, apesar de ter perdido votos, nas eleições de Novembro do mesmo ano, o que permitiu ao Presidente Hindenburg nomear Hitler Chanceler da Alemanha em Janeiro de 1933.
Hitler, utilizou para o efeito um discurso populista e demagógico, que, de forma intencional, era «politicamente incorrecto», para o diferenciar do discurso dos outros políticos e fazê-lo, assim, parecer mais genuíno,
Recorrendo também, sistematicamente, a factos falsos, Hitler soube aproveitar e explorar, durante a década de 30 do século XX, os efeitos devastadores na Alemanha da profunda e prolongada crise cíclica do capitalismo que ficou conhecida como a Grande Depressão de 1929: miséria, desemprego, sentimentos de desproteção e de abandono de grande parte dos eleitores, desilusão com os partidos tradicionais, ânsia desesperada por uma mudança, procura de um “salvador” que restaurasse o orgulho nacional e um sentimento de humilhação do país na sequência da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, agravado pelas pesadas e desonrosas condições que o Tratado de Versalhes lhe havia imposto.
Descontadas as devidas diferenças, os candidatos a ditadores que, nos últimos 20 anos, chegaram ao poder através de eleições «livres e justas», também o conseguiram, em regra, através do aproveitamento e da exploração demagógica e populista de situações de crise económica e social – que, no contexto do neoliberalismo e da desregulação da economia hoje dominantes, têm sido e serão, previsivelmente, cada vez mais frequentes e mais profundas – e através do recurso intensivo às fake news, às quais a opinião pública, desinformada pelas redes sociais, é cada vez mais permeável.
A similitude das circunstâncias históricas em que os candidatos a ditadores, Hitler incluído, conquistaram, nos últimos 92 anos, o poder, através de eleições «livres e justas», confirma o acerto da frase atribuída a Mark Twain segundo a qual «A História não de repete, mas rima»…
Razões pelas quais não podem ser desvalorizados, a nenhum título, o significado da vitória de Trump e as suas possíveis consequências.