«Na sequência do despacho de 02/12/2024 de um Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) que ordenou a baixa do processo principal da Operação Marquês à 1ª instância para distribuição para julgamento, a comunicação social noticiou que a data de início do julgamento de José Sócrates deverá ser marcada em breve».
Sócrates apostrofou, histrionicamente, aquele despacho, qualificando-o de «ilegal» e «infame»1 por ter enviado o processo para julgamento sem estarem decididos os recursos que ele, Sócrates, interpôs do Acórdão do TRL de 25/01/2024 que revogou a decisão do Juiz de Instrução Ivo Rosa e recuperou 118 dos mais de 170 crimes imputados a Sócrates e a outros arguidos que aquele Juiz de Instrução tinha arquivado.
Sócrates também garantiu, enfaticamente, que não será julgado porque «o acórdão de [25 de] Janeiro [de 2024] não transitou em julgado e não vai transitar sem que estejam esgotados todos os recursos», após o que concluiu que, «não havendo acusação nem pronúncia, não pode haver julgamento nenhum».2 3
E vituperou o Conselho Superior da Magistratura (CSM), que acusou de ter cometido «um descarado abuso de poder» ao criar um grupo de trabalho para acompanhar e acelerar a tramitação dos processos da Operação Marquês e de o ter posto ao serviço de uma «agenda e motivação política (…) alinhada com a visão da direita», tendo ainda perguntado porque «não foi criado idêntico grupo para acompanhar outros processos a decorrer com prazos igualmente escandalosos».4
Com tais declarações, para além do mais descomedidas, sobre estas decisões judiciais no principal processo da Operação Marquês, Sócrates tem andado a enganar as pessoas, ocultando o fundamento legal daquelas decisões.
É legal e legítima a decisão do TRL de submeter Sócrates a julgamento sem estarem decididos todos os recursos interpostos do Acórdão que revogou a decisão instrutória de Ivo Rosa: o TRL fê-lo ao abrigo de uma norma que prevê que, quando para os julgadores for claro que as partes, com determinados recursos, têm propósitos meramente dilatórios – pretendendo com eles apenas atrasar a tramitação do processo – o tribunal pode atribuir-lhes um efeito meramente devolutivo, com o que serão julgados, mas em processos separados, sem suspenderem a tramitação da acção principal.
Essa norma é a do o art. 670º do Código de Processo Civil (CPC), que dispõe no seu nº 1 que, «se ao relator parecer manifesto que a parte pretende, com determinado requerimento, obstar ao cumprimento do julgado ou à baixa do processo ou à sua remessa para o tribunal competente, leva o requerimento à conferência, podendo esta ordenar, sem prejuízo do disposto no artigo 542º, que o respectivo incidente se processe em separado».
Por sua vez, o art. 542º, nº 1 e nº 2, al. c), do CPC, dispõe que, «tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa» e que se diz litigante de má-fé «quem, com dolo ou negligência grave (…) «tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de (…) entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».
Ora, Sócrates tem interposto inúmeros e sucessivos recursos (ao todo 52, para o TRL e para o Supremo Tribunal de Justiça), cuja tramitação há muito vem impedindo o processo principal de baixar à 1ª instância para julgamento.
A situação tornou-se tão escandalosa que o TRL viu-se obrigado a proferir em 20.11.2024 um Acórdão no qual consignou que "o reclamante/recorrente encontra-se a protelar de forma manifestamente abusiva e ostensiva o trânsito do despacho de pronúncia e, consequentemente, a sua submissão a julgamento» e que «não é processualmente admissível a transformação de um processo judicial num interminável carrossel de (…) recursos em que, sucessivamente (…), são suscitadas (…), sem qualquer fundamento real, sucessivas questões (…) até, enfim, à prescrição do procedimento criminal».
Quanto à criação de «um grupo de trabalho para acompanhar e acelerar a tramitação dos processos da Operação Marquês», é uma medida que cabe nas competências do CSM, que incluem a de «estabelecer critérios de prioridades no processamento de causas que se encontrem pendentes nos tribunais por período considerado excessivo».5
É certo que em Portugal muitos outros processos judiciais têm grandes atrasos na sua tramitação.
Mas os processos da Operação Marquês não são quaisquer processos nem o ex-Primeiro Ministro José Sócrates, acusado de ter cometido 22 crimes (3 de corrupção, 13 de branqueamento de capitais e 6 de fraude fiscal), é um arguido qualquer: andou bem, pois, o CSM ao criar um grupo de trabalho para acelerar a tramitação dos processos, para obviar «ao impacto que a demora processual pode ter na confiança dos cidadãos na Justiça».
Há uma crise da Justiça em Portugal, perceptível, sobretudo, na lentidão da sua marcha, cujas causas radicam, antes de mais, na falta de magistrados, de funcionários e de meios de investigação e para a qual também concorre uma concepção, consagrada no Código de Processo Penal, demasiado ampla da Instrução, que permitiu a Ivo Rosa apreciar os indícios de que depende a aplicação de uma pena a um arguido como se fosse Juiz final de uma audiência de julgamento.
Dessa crise decorre, naturalmente, uma visão crítica de muitos portugueses da Justiça, que se agravaria e expandiria, indesejavelmente, se o TRL e o CSM não tivessem tomado as decisões que tomaram para garantir que Sócrates vai, enfim, ser julgado.
1 Jornal de Notícias (07.12.2024).
2 Observador (07.11.2024).
3 Lusa (07.12.2024).
4 Observador (07.12.2024).
5 Plano de Actividades do CSM para o Biénio 2024/2025 (consultável em PlanoAtividadesBienio2024-2025.pdf).