O Primeiro-Ministro (PM) Luís Montenegro cometeu a mais grave ilegalidade que, depois de Sócrates, alguma vez foi cometida, no exercício daquelas funções, no Portugal democrático.
Luís Montenegro tem vindo a violar o princípio da exclusividade do exercício de funções públicas consagrado no Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos (REFTCP), regulado pela Lei nº 52/2019, de 31 de Julho, o que tem vindo a fazer desde 02.04.2024, data em que tomou posse como PM, até anteontem, dia 05.03.2024, data em que a mulher terá deixado de ser sócia da sociedade comercial familiar Spinumviva 1.
O art. 6º, nºs 1 e 2, do REFTCP dispõe que «os titulares de cargos políticos (…) exercem as suas funções em regime de exclusividade» e que tal exercício de funções em regime de exclusividade é incompatível «com quaisquer outras funções profissionais remuneradas ou não e com a integração em corpos sociais de quaisquer pessoas colectivas de fins lucrativos».
O actual PM violou o regime da exclusividade do exercício de funções públicas por ter, aparentemente, incorrido em dois erros jurídicos de palmatória, grosseiros até, que não acredito que se tenham ficado a dever a ignorância ou a distração suas, até porque, sendo advogado, terá, certamente, estudado de modo criterioso as matérias em causa…
Por um lado, Montenegro, ao ter cedido à mulher uma parte da sua quota na sociedade Spinumviva, fez um negócio proibido por lei, por conseguinte, um negócio nulo e de nenhum efeito…
Por outro lado, Montenegro fez uma interpretação meramente literal – e, consequentemente, restritiva – do citado art. 6º, nº 2, do REFTCP, que alude à proibição de os titulares de cargos políticos exercerem quaisquer «outras funções profissionais remuneradas ou não» mas não estabelece expressamente a proibição de os mesmos auferirem outros rendimentos…
Quanto à cedência que fez à mulher de uma parte da sua quota maioritária na sociedade Spinumviva, os advogados, os professores de Direito e os constitucionalistas foram unânimes – são insuspeitas, a propósito, as declarações de António Lobo Xavier sobre esta matéria 2 – na afirmação de que, por ser casado no regime da comunhão de bens adquiridos e tendo aquela sociedade sido constituída após o casamento, Montenegro estava proibido de vender a sua quota societária à mulher, tendo, consequentemente, tal venda sido nula e de nenhum efeito e tendo Montenegro continuado a deter, depois de ser PM, a quota de 62,5% do capital social da empresa que detinha antes da venda.
É, com efeito, o nº 1 do art. 1714º do Código Civil que determina que «não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados», acrescentando o seu nº 2 que «consideram-se abrangidos pelas proibições do número anterior os contratos de compra e venda e sociedade entre os cônjuges, excepto quando estes se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens».
Quanto à interpretação literal que Montenegro fez do art. 6º, nº 2, do REFTCP, ela permitiu-lhe alegar, durante algum tempo – embora sem razão – que, uma vez que tinha deixado de ser gerente da Spinumviva em 30.06.2022, não teria desde então exercido, para além da de Primeiro-Ministro, qualquer outra função profissional…
Só que, embora a letra do art. 6º, nº 2 do REFTCP só aluda à proibição de os titulares de cargos políticos exercerem «quaisquer outras funções profissionais remuneradas ou não», o princípio da exclusividade do exercício de funções públicas também abrange a vertente remuneratória, com o que visa garantir que o detentor do cargo político não aufere outros benefícios económicos, sobretudo de empresas, susceptíveis de pôr em causa a sua independência.
Montenegro não pode ignorar aquilo que os estudantes de Direito aprendem logo no 1º ano do curso: a interpretação de uma norma jurídica «não deve cingir-se à letra da lei», devendo «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» 3.
Sabe-se hoje que o PM – apesar de o ter sempre desmentido e de jamais o ter admitido – recebeu, mensalmente, desde que tomou posse, uma avença de 4.500,00 €, paga à Spinumviva pela empresa Solverde, uma vez que, sendo casado no regime de comunhão de adquiridos, os proventos gerados por aquela empresa reverteram para o agregado familiar de que ele faz parte, bem como para a respectiva economia comum.4
Jorge Reis Novais, constitucionalista e professor catedrático jubilado da Faculdade de Direito de Lisboa, sustenta que «um primeiro-ministro não pode receber uma avença de uma empresa, qualquer que ela seja, quando está em funções» e que o que já se conhece sobre este assunto «é suficientemente grave para não permitir (…) a continuidade do primeiro-ministro em funções».5
Em função do exposto, se tivesse algum decoro, Luís Montenegro devia demitir-se já do cargo de PM, sem mais manobras e evasivas políticas, como a de ficar à espera do “chumbo” da moção de confiança que o seu Governo vai apresentar na AR…
1 Diário de Notícias, 05.03.2025.
2 SIC Notícias, 19.02.2025.
3 Art. 9º, nº 1, do Código Civil.
4 Paulo Veiga e Moura em declarações à SIC Notícias em 28.02.2025.
5 Entrevista à Rádio Renascença em 28.02.2025.