Alguns jornalistas e comentadores têm classificado como mera «falta de ética» o facto de Luís Montenegro, sendo Primeiro-Ministro (PM), ter recebido, ao longo de quase um ano, uma avença mensal de 4.500,00 € – paga pelo grupo Solverde, Casinos & Hotéis à empresa Spinumviva, a sociedade comercial familiar de Montenegro, da mulher e dos filhos – com o que violou o princípio da exclusividade do exercício de funções públicas, consagrado no art. 6º do Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos (REFTCP), aprovado pela Lei nº 52/2019, de 31 de Julho.
O PM insiste em que não recebeu «um cêntimo» daquela avença, mas a verdade é que, por ter cedido à mulher, com quem está casado no regime da comunhão de bens adquiridos, uma parte da sua quota na sociedade Spinumviva, fez um negócio proibido por lei e, por isso, nulo e de nenhum efeito.
Pelo que, tendo continuado a deter, em conjunto com a mulher, 62,5% do capital da Spinumviva, todos os proventos desta, incluindo a tal avença, entraram na economia comum do agregado familiar do PM e também reverteram a seu favor.
A conduta do PM revelou falta de ética, mas essa falta de ética (republicana) nasceu da grave ilegalidade que ele cometeu ao ter violado o princípio da exclusividade do exercício de funções públicas
De resto, o PM cometeu outra ilegalidade grave por não ter cumprido o dever de apresentar a declaração de todos os seus «rendimentos, patrimónios, interesses, incompatibilidades e impedimentos», que inclui, nos termos do art. 16º, nº 3, do citado REFTCP, «a identificação dos actos que geram, directa ou indirectamente, pagamentos» de «pessoas colectivas públicas e privadas a quem foram prestados serviços» e «subsídios ou apoios financeiros recebidos por si, pelo cônjuge não separado de pessoas e bens ou por pessoa com quem viva em união de facto ou por sociedade em cujo capital participem».
Não são inocentes as razões pelas quais há quem sustente que o PM não cometeu qualquer ilegalidade e que a sua conduta só deve relevar no plano ético.
É que os actos que “só” atentam contra a ética, para além de não terem, em regra, consequências legais, são sempre ajuizados subjectiva e aleatoriamente porque tal avaliação depende da opinião de cada um…
Por estas e por outras razões – entre as quais a de que a presente crise foi desencadeada menos pela natureza e pelas consequências censuráveis da política do actual Governo do que pela conduta ilegal de Montenegro – defendi aqui que o PM devia ter-se demitido.
Se Montenegro se tivesse demitido poderia, porventura, não ter ficado completamente fechada a porta para a possibilidade, constitucionalmente admissível, já adoptada no passado, de o PM ser substituído por outro dirigente do PSD e de serem, assim, evitadas eleições legislativas antecipadas, apesar de ser previsível que o Presidente da República (PR) resistisse a essa solução, considerando a sua ainda recusa da proposta de António Costa de ser substituído por Mário Centeno na chefia do Governo.
As verdadeiras razões pelas quais Montenegro jamais admitiu a possibilidade de se demitir prendem-se com os factos de estar “agarrado” ao poder e de acreditar que o PSD vai crescer à custa de votos de eleitores do PS politicamente posicionados mais ao centro e à custa da recuperação de votos que já foram seus e que tinham fugido para o Chega…
Julgo que competia ao PR, em nome da estabilidade política que lhe cabe garantir, ter-se antecipado aos factos consumados por Montenegro e ter sido mais diligente com vista a uma superação da crise que não passasse pela realização de eleições antecipadas.
O art. 195º, nº 2, da Constituição dispõe que o PR «só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas», pressuposto que, no meu entendimento, não estava preenchido.
Mas, no exercício da sua magistratura de influência, o PR poderia ter sugerido a Montenegro que se demitisse, bem como poderia ter tornado pública, através das habituais «fontes de Belém», essa sugestão, fazendo-o antes de a Assembleia da República (AR) ter rejeitado a moção de confiança que o Governo apresentou, em vez de se ter limitado a informar, com aparente displicência, o Conselho de Estado, «que tinha dito ao primeiro-ministro (…) não ter visto com bons olhos a ideia de este apresentar uma moção de confiança no Parlamento»1…
Admito que o PR, caso tivesse antecipado a sua intervenção e tivesse actuado mais diligentemente, talvez pudesse ter evitado a instabilidade política decorrente da dissolução da AR e da realização de eleições antecipadas, com as tendências e/ou riscos inerentes de bipolarização partidária, de aumento da abstenção eleitoral e de aproveitamento da situação pelo Chega para intensificar a sua campanha de desprestígio e de fragilização da democracia…
Também admito que, se não aceitasse – como, presumivelmente, não aceitaria – a sugestão do PR para se demitir, sobretudo se esta fosse tornada pública, Montenegro teria ficado colocado numa posição politicamente incómoda e com prováveis consequências negativas para os resultados eleitorais do PSD…
Não posso deixar de me interrogar sobre quanto estes receios terão ou não pesado na, pelo menos aparente, falta de empenhamento do PR numa saída da crise que não passasse pela realização de eleições antecipadas…
1 Expresso de 13.03.2025.