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130 Anos Depois: A Escala de Joshua Slocum no Faial

por Incentivo
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A primeira paragem da volta ao mundo em solitário

 

No final do século XIX, quando a navegação ainda dependia da força do vento e da coragem dos homens do mar, um navegador solitário partiu numa jornada que viria a marcar a história da humanidade. Joshua Slocum, nascido a 20 de fevereiro de 1844 na Nova Escócia, Canadá, e naturalizado cidadão dos Estados Unidos, tornou-se o primeiro homem a circum-navegar o globo sozinho, a bordo de um modesto veleiro chamado Spray. Esta façanha não só o imortalizou entre os grandes navegadores da história, como também inscreveu de forma poética e indelével o nome dos Açores — em particular o da ilha do Faial e da cidade da Horta, neste marco da aventura marítima.

A vida de Slocum sempre esteve ligada ao mar. De origem inglesa, desde criança habituou-se ao convívio com as águas. Começou como grumete e ascendeu a capitão e armador de grandes veleiros. Em 1887, depois de naufragar com a sua barca Aquidneck nas costas do Brasil, construiu com as próprias mãos um pequeno barco ao qual chamou Liberdade, com o qual retornou aos Estados Unidos em 1888. Após anos procurando trabalho como construtor naval ou comandante, recebeu em 1892 a oferta de um barco abandonado e quase destruído: o Spray, um velho barco ostreiro com mais de cem anos, encalhado numa pastagem à beira de um rio. Com as próprias mãos, Slocum reformou completamente a embarcação, reconstruindo-a a partir dos destroços com engenho, dedicação e minúcia, dando vida ao que viria a ser um dos mais icónicos veleiros da história marítima.

O Spray, com 11,2 metros de comprimento e 12,7 toneladas brutas, foi reaparelhado como sloop e, mais tarde, como yawl, revelando-se extremamente marinheiro e estável, capaz de manter o rumo com pouquíssimo esforço humano. Foi a bordo deste pequeno barco de madeira que Slocum, a 24 de abril de 1895, largou amarras em Boston e iniciou a sua circum-navegação.

Cruzando o Atlântico, foi na manhã de 19 de julho que o primeiro sinal de terra surgiu no horizonte. Como ele mesmo escreveu:

“Terra à vista! Na manhã do dia 19 de Julho de 1895 uma cúpula mística ergueu-se, como uma montanha prateada e solitária, do mar à nossa proa… estava quase certo de que se tratava da ilha das Flores.”

Às 16h30 desse dia, com o nevoeiro dissipado, passou pelo través da ilha. No dia seguinte, 20 de julho, avistou finalmente a ilha do Pico surgindo sobre as nuvens. O sol levantou lentamente o véu de névoa que escondia as ilhas, e, uma após a outra, foram-se revelando no horizonte. Quando se aproximou mais, os campos cultivados tornaram-se visíveis e Slocum não poupou palavras:

“Oh, como são verdes os milheirais!”

Às 16h30 daquele dia, lançou ferro no Porto da Horta. Esta foi a primeira escala oficial da sua jornada e uma das passagens mais líricas e marcantes da sua narrativa.

Slocum ficou quatro dias na ilha, encantado com a hospitalidade da população, com a beleza natural e com a vibrante vida marítima da Horta. Foi aqui que repousou, reabasteceu e fez os ajustes necessários ao Spray, antes de prosseguir viagem. O impacto desta breve estadia foi tal que, até hoje, os Açores ocupam um lugar de destaque na memória da sua aventura.

No seu livro, escreveu:

“Encontrei a Horta a cidade mais animada dos Açores e o seu povo o mais empreendedor. O porto é seguro, a ancoragem excelente. Em nenhum outro lugar do mundo um marinheiro encontraria melhor abrigo, nem um povo mais disposto a ajudá-lo.”

Deste porto açoriano, partiu com planos de atravessar o Canal do Suez, mas relatos sobre a presença de piratas no Mar Vermelho levaram-no a mudar de rumo e a contornar o continente sul-americano por baixo, através do temido Estreito de Magalhães. Ironicamente, seria ainda antes disso, ao largo das costas de Marrocos, que foi perseguido por piratas mouros, uma das muitas peripécias registadas no seu diário.

Com um profundo conhecimento dos regimes de vento, aproveitou os alísios de nordeste que o empurraram até Pernambuco, onde fundeou 40 dias após deixar Gibraltar. Descendo a costa da América do Sul, encalhou antes de alcançar o Estreito de Magalhães, onde enfrentou um dos maiores desafios da viagem. O Spray, mesmo não sendo um navio concebido para navegação em águas tão traiçoeiras, conseguiu cruzar o estreito e atingir o Pacífico. Durante a travessia, Slocum confundiu a ilha Fury com o Cabo Horn e entrou inadvertidamente numa zona terrivelmente perigosa de recifes e baixios conhecida como Milky Way. Após nova travessia por canais da Patagónia, fez escala na ilha Juan Fernández, onde conheceu Manuel Carroça, um açoriano apelidado de “o Rei”, que ali vivia desde os tempos da caça à baleia.

Slocum continuou rumo ao Pacífico Sul, passando perto das Marquesas, mas só fundeou novamente nas ilhas Samoa, em Appia, a 16 de julho de 1896 — quase um ano após a sua passagem pela Horta. Seguiram-se Newcastle e Sydney, na Austrália. Tentou dobrar o Cabo Leeuwin, mas o mau tempo forçou-o a desviar para o Estreito de Torres, com escalas na Tasmânia, ilhas Thursday, Cocos Keeling, Rodrigues, Maurícias e, depois, no porto de Durban, na África do Sul. Já no Índico, passou por Cidade do Cabo e deu início à terceira e última travessia do Atlântico. Fez escalas em Santa Helena, Ascenção, Granada e Antígua, antes de finalmente lançar ferro em Newport, Rhode Island, no dia 27 de junho de 1898. Estava concluída a primeira volta ao mundo feita em solitário: foram três anos, dois meses e três dias de navegação, cobrindo cerca de 46 mil milhas náuticas.

Joshua Slocum relatou toda a aventura no seu livro “Sailing Alone Around the World”, publicado em 1900. A obra tornou-se um bestseller internacional e é hoje considerada uma das mais importantes narrativas autobiográficas da história da literatura marítima. Mais de um século depois, continua a ser lida como um testemunho de engenho, coragem e espírito aventureiro. Slocum provou que, assim como Vasco da Gama abriu as portas da navegação oceânica, era possível dar a volta ao mundo num barco pequeno, sem piloto automático, apenas com conhecimento, coragem e determinação.

A vida de Slocum terminou como viveu: em viagem. Em 14 de novembro de 1909, zarpou novamente no Spray, desta vez com destino às Índias Ocidentais e planos de explorar os rios Orinoco, Negro e Amazonas. Nunca mais foi visto. Em 1924, foi declarado oficialmente desaparecido. Nunca aprendeu a nadar, por considerar que, em alto-mar, isso raramente faria diferença. Morreu como viveu, confiando na embarcação, no vento e na liberdade do oceano.

A ilha do Faial e a cidade da Horta têm, assim, o privilégio de ter sido a primeira escala oficial da mais icónica das viagens solitárias da história da navegação. Esta ligação entre Slocum e os Açores não é apenas um episódio entre muitos; é um símbolo da beleza e importância estratégica do arquipélago no meio do Atlântico. Cabe ao Faial, e em especial à cidade da Horta, imortalizar esta passagem com o reconhecimento e a memória duradoura que ela merece, celebrando o momento em que um homem só, guiado pelas estrelas, pelo vento e pela vontade de descobrir, ancorou no coração dos Açores e entrou para sempre na história da humanidade.

 

Fontes: João Carlos Fraga; Livro “Sailing Alone Around the World”, Livro “75 anos do CNH”

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